“Eu nunca mais vou assinar uma carteira de trabalho na vida”


O chef Erick Jacquin fala sobre a dificuldade de manter um restaurante no Brasil, sua fama de durão e seu jeito de encarar as críticas

Erick Jacquin  (Foto: Época NEGÓCIOS / Alexandre Severo)
Erick Jacquin é um chef exigente ao extremo. Um dos mais premiados do Brasil, ele é uma das estrelas da versão brasileira do reality show MasterChef, programa de televisão produzido em mais de 40 países. Ao lado de outros dois cozinheiros renomados, Henrique Fogaça e Paola Carosella, Jacquin avalia chefs amadores e dispara frases nada amigáveis – “parece que você fez comida para as galinhas” ou “esse bife parece um bicho que vai andar”.
 
 
As frases divertidas - e sinceras demais – agora lhe rendem audiência, mas no passado lhe renderam processos trabalhistas. Estima-se que o cozinheiro tenha dívidas de R$ 1,5 milhão, entre falta de pagamentos a fornecedores e ações de ex-funcionários na Justiça. Seu restaurante, o La Brasserie, de alta gastronomia, fechou as portas no final do ano passado.
A fama de durão e de difícil convivência veio depois de empregados revelarem xingamentos e até arremessos de pratos pelo francês. À Época NEGÓCIOS, Jacquin afirmou estar mais calmo hoje em dia e que o seu jeito explosivo seria, na verdade, uma cobrança interna. “A exigência que eu tenho com os outros, eu tenho comigo. Ela está dentro de mim. Não é falta de respeito. Tem muita gente que me agradece”.

Agora, Jacquin tem a oportunidade de se tornar conhecido fora da cozinha - a sua exigência por qualidade já ganhou fãs pelo Brasil. “Eu gosto de botar pressão e gosto de trabalhar sob pressão. Um pouquinho de medo não faz mal”, afirma. Mas ele se recusa a contratar alguém novamente.

Você nasceu em uma cidade pequena do Vale do Loire, na França, e chegou ao Brasil em 1995. Porque decidiu vir para cá?
Quando eu cheguei ao Brasil, eu já era chef em Paris. Eu fui convidado a trabalhar aqui por um senhor chamado Vincenzo Ondei, que na época tinha um restaurante chamado Le Coq Hardy [restaurante no Itaim que fechou em 2008]. Fui convidado para ser o chef do lugar. Eu pensei muito nesse convite. Em outubro de 1994, vim conhecer o país. Fiquei por aqui uma semana. Voltei para a França, conversei com a minha esposa na época [a sommelière Katia Lefriec] e ela concordou. Nós mudamos em fevereiro de 1995. Imaginávamos passar três ou quatro anos, ganhar um dinheiro, voltar para a França e comprar um restaurante. No fim, estou aqui ainda.

Como você se apaixonou pela gastronomia?
Eu nunca quis fazer outra coisa. Desde moleque, eu sempre dizia que queria ser cozinheiro. Eu nunca imaginei fazer outra coisa, infelizmente.

Por que infelizmente?
Porque ser cozinheiro não é ter uma vida normal – é muito mais do que uma profissão, principalmente quando se quer fazer muito bem. Eu decidi o que eu queria fazer muito novo e comecei a trabalhar muito novo. Meus pais se preocupavam muito comigo, porque essa é uma profissão em que se trabalha enquanto as outras pessoas estão se divertindo. Não é fácil começar jovem, mas nunca foi um problema para mim, porque eu sempre me diverti trabalhando. Na realidade, eu nunca trabalhei. Eu trabalhei muito, mas nunca foi um trabalho, ainda não é um trabalho, é tudo – é a minha vida. Então, eu não me arrependo. Eu não sei se existe no mundo uma profissão que me deixaria mais feliz do que cozinheiro.

Você disse que trabalha muito. Quantas horas por dia?
Um cozinheiro que trabalhou 12 horas no dia teve um bom dia de trabalho. Agora, não é bom trabalhar muito. O chef que trabalha 18 horas, já não cozinha igual, já não consegue fazer coisa boa. No Brasil, por exemplo, o restaurante fecha muito tarde. Às vezes, até 1h da manhã. Na Europa, nenhum restaurante muito bom vai te receber nesse horário. Um bom restaurante na França fecha às 21h30, 22h no máximo. Você acha que o cozinheiro de um restaurante que abriu cedo tem vontade de fazer um prato à meia-noite? Impossível.

Quando você decidiu ser chef?
Eu nunca decidi ser chef, eu decidi ser cozinheiro, o que é muito diferente. Antes de ser chef, precisa querer ser cozinheiro. Mas aqui no Brasil todo mundo quer ser chef e não quer ser cozinheiro. A ordem é: primeiro vamos aprender a cozinhar, depois vamos ser chef e depois vamos aparecer na televisão. Tem muita gente que quer fazer televisão, antes de ser cozinheiro. E é por isso que aqui existem chefs que são péssimos cozinheiros. É lógico que eu não vou citar nomes. Mas tem, e muito. Essa profissão foi muito valorizada por aqui, assim como publicidade e advocacia. Eu não consigo entender como uma faculdade no Brasil vende curso de chef de cozinha. Existe curso de presidente da República? Existe curso de presidente de banco? Não, tem curso de economia. A escola é importante, mas um bom chef aprende na prática.

Como você começou na profissão?
Depois de escolher ser cozinheiro, meu pai pediu que eu fosse até a confeitaria da cidade onde eu nasci, um lugar de quatro mil habitantes, para trabalhar durante o Natal. Eu trabalhei durante o Natal e o Ano Novo e adorei. Tinha 15 anos. Depois, conheci um cara que tinha um buffet e fazia festa. Trabalhei lá no verão e adorei também. Eu dizia: é isso que eu quero fazer. Minha mãe queria que eu estudasse. E eu estudei, mas não queria. Eu queria mesmo era trabalhar. Depois, minha mãe me colocou em uma escola de gastronomia com duração de dois anos – mas em uma verdadeira escola, com 30 alunos. Lá tinha um restaurante aberto ao público. Nós cozinhávamos todos os dias, não era uma escola para faturar com dois mil alunos. Depois fui para Paris, onde eu realmente comecei minha carreira de cozinheiro até virar chef de cozinha em 1989, aos 25 anos.

Naquela época, quem te inspirava? Tinha algum grande chef conhecido?
Isso não existe. É bobagem. Eu nunca comprei um livro de cozinha, por exemplo. A minha inspiração vem do cheiro. O cheiro da comida. O cheiro do produto. A maioria das fotos dos pratos que estão nos livros, nos jornais ou nas revistas não dá pra comer. A imagem da foto do livro tem pouco a ver com o prato que é servido nos restaurantes. Tem comida para o livro, para a revista, para o jornalista e tem comida para o cliente. O mais importante da comida é o cheiro. Eu não me espelhei em ninguém, meu foco era só no cliente.

Hoje, você é um dos chefs franceses mais famosos do Brasil. Como você acredita ter chegado até aqui? Foi a sua obsessão por qualidade?
Perseverança e coragem – eu nunca desisti diante das dificuldades. Até porque, às vezes, a felicidade atrapalha mais que a dificuldade. Você acha que já chegou lá, que virou o chef do ano, que é o melhor da França no país. E, na verdade, é o contrário. É nesse momento que você tem que fazer muito mais. Porque não é fácil, muita gente tem inveja, muita gente quer pegar o seu lugar. Em dois momentos da sua vida você deve lutar: lutar para continuar em uma posição boa e lutar quando você não estiver tão bem. Todo mundo tem uma fase ruim, não é?

No MasterChef tem pressão o tempo todo. Pressão no trabalho atrapalha ou ajuda?
Depende do que você faz, depende do que você quer. O elogio atrapalha. Em alguns casos, se você disser para o cara que a comida dele está excepcional, ele vai relaxar. Eu não sou uma pessoa que faz muito elogios. Nunca fiz muitos elogios para as pessoas que trabalhavam comigo. Se eu fizesse um elogio, as pessoas até ficavam espantadas. Eu acredito que o elogio atrapalha. Eu também não sou uma pessoa que gosta de ficar recebendo elogios. Para ajudar alguém, você deve elogiar na hora certa. Se a pessoa estiver deprimida, você deve elogiar para ela voltar. Mas se as pessoas estão bem, você não pode elogiar – você vai diminuir o padrão do trabalho. No MasterChef, eu dei uma dura em vários candidatos para que eles ficassem. A pressão é importante. Eu gosto de botar pressão e gosto de trabalhar sob pressão. Um pouquinho de medo não faz mal.

O que é preciso fazer para ser um bom cozinheiro no Brasil?
Trabalhar. Não existe bom chef no Brasil, um bom chef na França ou um bom chef na Itália. Precisa trabalhar muito, aprender, mudar várias vezes de restaurante. Para chegar lá, você também não pode estar com pressa de ganhar dinheiro. Eu trabalhei muitos anos ganhando pouco. Demorei a comprar o meu primeiro carro, por exemplo. Ia trabalhar de trem em Paris. O meu quarto tinha 11 metros quadrados. O chuveiro era no corredor. Dizem que francês não toma banho, mas nós tomávamos muito, porque tínhamos o cheiro da comida [risos].  Se eu pudesse dar uma dica para ser um bom cozinheiro seria: faça uma faculdade de manhã de administração e trabalhe em um restaurante durante a noite – muito melhor do que entrar em uma faculdade que tem professores de 24 anos, que são ex-alunos da escola. É besteira. Se eu pudesse dar uma dica para ser um bom chef, seria: ouça os seus clientes. Muitas pessoas não gostam de ouvir os outros, mas os chefs têm obrigação de ouvir os clientes. Os clientes são as estrelas do restaurante. Não são os jornalistas que dão as estrelas, são os clientes. Eu pergunto aos meus clientes sobre a comida. Às vezes, eu não concordo, mas eu pergunto.

O bom chef deve se dedicar só a cozinha, sem se preocupar com a administração?
Eu não sou a melhor pessoa para responder a essa pergunta [risos]. Existem chefs que são bons administradores e outros que são péssimos. Acho que a administração toma muito tempo de um restaurante e o chef fica sem tempo de cozinhar. Ele não deve administrar o local, mas deve no mínimo se interessar pelas contas – ele precisa saber quanto pode gastar, por exemplo, mas não deve pensar só em números.

Quem é o melhor chef do Brasil para você?
Eu nunca vou falar isso. Nem sei. Não acredito nisso. Não tem um chef melhor que o outro, cada um tem a sua especialidade e experiência.

Em novembro do ano passado, o seu restaurante francês La Brasserie fechou as portas por problemas de administração após nove anos. Onde você errou? O que faria diferente se pudesse?
Quando eu abri esse restaurante, há dez anos, errei de local. Errei de bairro. Não tenho nada contra Higienópolis, mas a cidade mudou - e é um inferno agora. Os meus clientes do Morumbi não iam mais lá, por exemplo. Os clientes falavam: “Jacquin, me desculpe, mas o seu restaurante é contramão, é muito longe”.  Outro erro foi que eu tive muitos funcionários. Se um dia eu abrir outro lugar, vai ser um local bem pequeno. Só para mim, sem sócio. Além disso, iria fechá-lo aos finais de semana e só ia deixar aberto até 22h30. É muito difícil de administrar e eu não estou falando só da parte financeira. Fechar o restaurante foi uma decisão certa, porque hoje as pessoas lembram dele de uma forma positiva – elas lembram do bom serviço e da boa comida que nós servíamos. E eu não queimei o meu nome.

Então você pensa em abrir outro restaurante?
Não, eu nunca mais vou assinar uma carteira de trabalho na vida. Até que o Brasil passe por reformas, nunca mais vou assinar uma carteira de trabalho. Vai chegar uma época em que ninguém mais vai querer ter funcionário, só as grandes empresas. A injustiça é o que mais me incomoda. Eu não sou milionário, sou cozinheiro e trabalhador. Eu não fui o chef que não trabalhava. Precisa ser muito corajoso para pedir um alvará de restaurante no Brasil. É documento atrás de documento. Pode ser que o governo esteja certo, mas eles precisam facilitar o processo.

Todo mundo conhece o seu jeito explosivo. Esse jeito, que antes te atrapalhava na La Brasserie, hoje te favorece no MasterChef?
Pode ser. O MasterChef me deu a oportunidade de mostrar quem eu sou. Eu não mudei. O meu personagem sou eu. Mas era bem mais duro no meu restaurante do que no MasterChef. Aliás, nem sou tão duro no MasterChef.

Você ganha dinheiro participando do programa? 
Não. Tem uma ajuda de custo. Com o programa, eu espero ganhar dinheiro no futuro. O MasterChef é a oportunidade de ser conhecido por um público diferente. Hoje, eu sou conhecido pelas classes A e B – e o programa irá me fazer muito mais conhecido.

Você tem sido abordado nas ruas pelas pessoas?
Às vezes, sim. As pessoas me chamam de bravo [risos] e eu recebo muitos elogios também.

Estima-se que você e a La Brasserie possuam dívidas e ações trabalhistas de R$ 1,5 milhão. É verdade? Como você pretende pagar essas dívidas?
Como você acha que se paga uma dívida? Em dinheiro [risos]. Se alguém aceitar uma permuta, precisar fritar um ovo, eu vou. Já paguei alguns fornecedores trabalhando. Mas tem dívida que vai ser difícil pagar. Eu sei que não vai ser fácil. Hoje, eu vivo de fazer jantares nas casas das pessoas. Não é todo dia que tem, mas tem. Com o MasterChef, eu vou ter mais oportunidade. O meu restaurante era caro, cerca de R$ 300 por pessoa. O cara que ia lá nem sempre tinha muito dinheiro. Alguns iam só quando era aniversário de casamento, por exemplo. Eu vendia uma mesa dentro da cozinha por R$ 1,3 mil para duas pessoas. A qualidade tinha que ser impecável. Perguntava para as pessoas que trabalhavam comigo: ‘Imagina que esse prato vai custar R$ 120, você pagaria? Não? Então porque você quer que os outros paguem? Porque os clientes devem pagar pela merda que você faz?’ Agora, sobre o valor das dívidas: eu não fiz a conta. É sério, mas deve ser por aí.

Hoje você está mais tranquilo ou continua arremessando pratos nas pessoas? Essa história é real?
Hoje, eu sou muito mais tranquilo. Estou mais velho e, depois que fechei a La Brasserie, tenho muito menos pressão. Não foi fácil fechar esse restaurante. Muita gente só olha o meu lado durão, só fala que o estabelecimento fechou. Eu chorei muito. Os bancos não queriam mais conversar comigo. Tentei muito, lutei muito. Muitos funcionários me ajudavam e gostavam de mim. O problema é que as pessoas só gostam de valorizar o que não deu certo. Teve funcionário que falou mal de mim, mas que trabalhou só três meses comigo. Esse não sabe quem eu sou. Eles falam mal, mas quando vão procurar emprego dizem que já trabalharam com o Jacquin. Pode me odiar, pode falar tudo que eu sou, pode ser que seja verdade, mas todo mundo fala que trabalhou comigo. Eu nunca prejudiquei um ex-funcionário. Nunca disse para não contratar alguém quando me pediam referência. Eu quero ver as pessoas felizes para que elas parem de falar mal de mim.

Você lida bem com criticas?
O que você acha? Se os clientes forem justos e honestos, eu não tenho nada contra. A crítica é muito boa. Eu gosto de polêmica, eu sou polêmico. Mas a crítica me incomoda quando ela é ignorante. A ignorância me incomoda. Eu sofri muito com uma matéria mal escrita divulgada em uma revista há dez anos. As pessoas pediam para eu não me importar, mas a matéria falava mal de tudo, não tinha nada de positivo. A crítica, até no MasterChef, sempre tem um lado positivo, não existe só o lado negativo. Tudo na vida tem um lado positivo. Todas as pessoas que trabalham no mundo merecem um lado positivo.

Em que momento o talento atrapalha?
O talento atrapalha quando os outros ficam com inveja do seu trabalho. O talento mesmo nunca atrapalha - o que atrapalha são as pessoas que querem te atrapalhar. A vida é um reality show. Hoje, eu tenho certeza que a vida é um jogo. Acredito que talento não é nada sem trabalho duro e perseverança. Músico é assim: tem gente que tem talento para tocar piano, por exemplo, mas se não se esforça, vai tocar de uma forma média. Tem gente que não tem talento, mas trabalha todo dia, toda hora – esse vai conseguir tocar piano muito bem.

Você disse que o que atrapalha é a inveja. Você sofreu muito com isso na sua carreira?
Não. Eu tinha muitos amigos. O que me faz sofrer é que as pessoas só valorizam as coisas negativas que aconteceram comigo. Tem ex-funcionário que fala mal de mim e nunca me defende, mas eu acho que nós temos que respeitar as pessoas que nos ensinaram a trabalhar. O chef francês que me ensinou a ser um bom cozinheiro, era pior do que eu, mas eu nunca vou falar mal dele. Ninguém queria trabalhar com ele. No começo, eu o achava maluco. Mas eu me dei bem com ele, trabalhamos juntos por seis anos. Eu aprendi muito, muito.


fonte: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Visao/noticia/2014/10/eu-nunca-mais-vou-assinar-uma-carteira-de-trabalho-na-vida.html

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